Esse post foi escrito mais pelo (passional) admirador do poeta português
Fernando Pessoa, do que pelo médico. Sendo assim, não houve nenhuma intenção de
dar cunho científico, acadêmico, a ele.
Tenho interesse em conhecer mais sobre as ligações observadas
entre os transtornos mentais e as artes. Também faço a pergunta que muitos
fazem: Por que alguns seres humanos, mesmo sendo portadores de sérios problemas
mentais, eram e são reconhecidamente geniais
naquilo que faziam, contrariando, muitas vezes, a visão lógica e científica?
Cito como exemplo o pintor holandês Van Gogh, que, mesmo portador de grave
transtorno mental, conseguiu ser um dos maiores pintores do mundo ocidental.
Além de ler e admirar, cada vez mais, a poesia de Fernando
Pessoa, também estudo a sanidade mental do poeta, tanto nos relatos de sua vida,
quanto na obra literária. Sei que é ousadia de minha parte, já que esse tema é
fruto de diversos estudiosos no mundo inteiro.
No Congresso Brasileiro
de Psiquiatria de 2010 foi apresentado o artigo Estudo Patográfico de Fernando Pessoa, elaborado pelos psiquiatras
Suzana Azoubel de Albuquerque e Othon
Bastos, de Pernambuco. A seguir o resumo:
“Fernando Pessoa, incontestavelmente um dos maiores gênios da literatura
universal, é objeto deste estudo patográfico. Através da análise de sua biografia
e obra, os autores buscam delinear seus perfis psicológico e psicopatológico e
caracterizar uma associação entre sua evidente bipolaridade e seu padrão
criativo. Os dados do estudo revelam claramente um componente bipolar e sugerem
haver influência de seu humor de base sobre a atividade literária, quanto ao
conteúdo, número de poemas e estilo literário. Verifica-se a presença de
múltiplas comorbidades: Dependência de Álcool, Transtornos de Ansiedade
Generalizada, de Ansiedade Social, além de Fobias Específicas. Do ponto de
vista caracterológico, constata-se um Transtorno de Personalidade Esquizóide,
com evidentes transtornos da psicossexualidade.”
Há quem afirme que Fernando Pessoa, por causa de seus
heterônimos (“Nome imaginário sob o qual um escritor cria
obras de estilo, tendência e características diversas das suas, como se fossem
de fato de outro autor”, segundo o dicionário Aulete), era portador de
Transtorno dissociativo, outrora denominado Transtorno de personalidades
múltiplas. Fui ao CID-10, livro de códigos internacionais e descrições dos
transtornos psiquiátricos, ler com mais atenção a respeito deste transtorno.
Vejam um pouco do que encontrei:
Transtornos
dissociativos [de conversão] - F44
“Os
transtornos dissociativos ou de conversão se caracterizam por uma perda parcial
ou completa das funções normais de integração das lembranças, da consciência,
da identidade e das sensações imediatas, e do controle dos movimentos
corporais. Os diferentes tipos de transtornos dissociativos tendem a
desaparecer após algumas semanas ou meses, em particular quando sua ocorrência
se associou a um acontecimento traumático. (...)”
Minhas
observações: Com base no CID-10 e na vivência na área da Saúde Mental, não
considero Fernando Pessoa como um portador de Transtorno Dissociativo. Os heterônimos
não eram personalidades que ele
assumia patologicamente
na vida, no dia a dia, mudando de comportamento de acordo com a personalidade
da hora, e sim recursos artísticos
(considerados geniais) que ele utilizou, lucidamente,
para dizer a verdade humana que o coração dele era portador, e tornar-se assim o
maior poeta da língua portuguesa. Só um
Fernando Pessoa seria "pouco", para dizer tudo o que ele tinha a
dizer.
Em outra frente do estudo continuo a leitura do livro Fernando Pessoa, uma quase auto-biografia, do escritor brasileiro
José Paulo Cavalcanti Filho, Editora Record, e encontrei um capítulo onde alguns familiares e amigos
que conviveram com o poeta por toda a curta vida dele, dizem como o viam, quais
seus comportamentos rotineiros e constantes. E este é um ponto importante para
uma efetiva avaliação e um diagnóstico psiquiátricos: como a pessoa é vista
pelos que a rodeiam. Neste capítulo também há palavras dele sobre si mesmo, que
revelam clareza, real contato com a intimidade de seus pensamentos e
sentimentos, reconhecendo em si as fragilidades, e, ao mesmo tempo expressando “clarividência”
(que o autor do livro chama visão “pretenciosa”, mas que o futuro confirmou o
que o poeta diz) a respeito da importância de seus escritos.
O capítulo:
Um homem discreto –
Página 88
(em marrom palavras de Fernando Pessoa, em negro do escritor e em vermelho o que dizem dele amigos e familiares).
“Não faço visitas, nem
ando em sociedade nenhuma – nem de salas, nem de cafés”; que fazê-lo seria “entregar-me a
conversas inúteis, furtar tempo se não aos meus raciocínios e aos meus
projetos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre serão mais belos que a
conversa alheia”. A explicação que dá para tal aversão às práticas
sociais é simples (e pretenciosa): “Devo-me à humanidade futura. Quanto me desperdiçar,
desperdiço do divino patrimônio possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a
felicidade que lhes possa dar.” Na dimensão do pensamento, apenas, que “nunca tive uma
idéia nobre de minha presença física. Pareço um jesuíta fruste (gasto). Sou um
surdo mudo berrando, em voz alta, os meus gestos”. Esses gestos são
comedidos, de “extrema cortesia”, mesmo delicados. “Sou tímido, e
tenho repugnância em dar a conhecer minhas angústias”; razão por que
(quase) nunca distribui cartões de visita (...). “Calmo e alegre diante dos outros”
é, “em
geral, uma criatura com que os outros simpatizam”. Ri pouco e ouve mais
do que fala – “Não se deve falar demasiado”. No fundo, “ouvir nunca foi para mim senão um
acompanhamento de ver”; porque, “a não ser que ouças, não poderás ver”. Seu
interesse é mais dialogar que debater. E não gosta de se exibir. De magoar os
outros menos ainda. O heterônimo Barão de Teive, com vida que quase reproduz a
do próprio Pessoa, diz: “Pus-me sempre
à parte do mundo e da vida ... nunca alguém me tratou mal, em nenhum modo ou
sentido. Todos me trataram bem, mas com afastamento. Compreendi logo que o
afastamento estava em mim, a partir de mim. Por isso posso dizer, sem ilusões,
que fui sempre respeitado. Amado , ou querido, nunca fui.”
Os
depoimentos dos que com ele conviveram são, entre si, parecidos. Segundo a irmã
Teca, “...era muito reservado e muitas vezes parecia
alheio ao que o rodeava. Contudo sempre foi extremamente dedicado, fácil de
contentar, não me lembro de o ver irritado. Nunca levantava a voz, era
educadíssimo. Para todos tinha sempre uma palavra amável, era o que se chamava
um gentleman, isso era.” Ophelia Queiroz (única
mulher alvo de seu amor, nunca vivido em toda a sua plenitude) a segue: “O Fernando era extremamente reservado. Falava muito pouco de
sua vida íntima”. Carlos Queiroz, sobrinho de Ophélia, diz que “seus gestos nervosos, mas plásticos e cheios de correção,
acompanham sempre o ritmo do monólogo, como a quererem rimar com todas as
palavras. Nunca ouvi ninguém queixar-se de ter sido atingido por ele.”
Para o escritor francês Pierre Horcade, “irradiava um
encanto indefinível feito de extrema cortesia, de bom humor e ainda uma espécie
de intensidade febril que borbulhavam sob a aparente fachada da boa
convivência.” Antônio Cobeira declara ser “uma
criatura afável, irrepreensível no trato, de primorosa educação, incapaz de uma
deslealdade, imaculadamente honesto, dedicadíssimo, triste e tímido.”
Jorge de Sena confirma ser “um senhor suavemente simpático, muito
bem-vestido, que escondia no beiço de cima o riso discretamente casquinado
(irônico). A calvície, os olhos gastos, o jeito de sentar-se com as mãos nos
joelhos e uma voz velada davam-lhe um ar estrangeiro, distante no tempo e no
espaço”. Casais
Monteiro sugere que “ninguém quis ser menos aparente”,
resumindo sua vida em um “discreto pudor, de amor ao silêncio e à
contemplação”. O amigo Almada Negreiros lembra ser uma “pessoa
calada”, a mais silenciosa do grupo. “Ele era
um auditivo, e eu um visual”. Em conversa com Antônio quadros,
acrescenta: “mas olha que nenhum de nós tinha dúvidas, ele era o
mestre!” Fernando DaCosta completa: “como
pessoa o Pessoa não tinha graça nenhuma, um macambúzio que só visto.
Conversávamos bastante, quer dizer, eu é que falava, ele estava quase sempre
calado. Ninguém sabia, aliás quem era o Fernando Pessoa. A glória só veio 20 e
tal anos depois de sua morte”.
Todo artista revela-se em sua obra, aliás, todo ser humano
mostra aquilo que é, naquilo que faz. Não há como se esconder. Até o momento, em
tudo o que já li escrito por ele e seus principais heterônimos (quatro livros e
diversos sites e textos divulgados na internet) encontrei lucidez, sensibilidade e
inteligência refinada e superior à maioria.
Concluindo: talvez pela minha pouca vivência em
psiquiatria – somente 6 dos 30 anos de médico, até hoje – não consigo ver, se é
que há, o psicótico em Fernando
Pessoa. Percebo sim, que ele viveu em um crônico e profundo sofrimento
psíquico, para o qual não encontrou (nem procurou efetivamente) tratamento
adequado, mas ainda não constatei uma alienação mental, ou, como diz o
dicionário Houaiss a respeito da palavra psicose:
“transtorno
mental caracterizado por desintegração da personalidade, conflito com a
realidade, alucinações, ilusões etc.”
O estudo continua.......
Gilvan Almeida