sábado, 6 de agosto de 2011

A praga do convencimento

Partindo do princípio de que somos iguais perante as leis dos homens e de Deus, considero uma ofensa aos direitos humanos toda forma de discriminação, preconceito, estigmatização ou qualquer outra manifestação que possa humilhar e causar sofrimento a um ser humano.
Encontrei muito do que penso neste texto, por isso resolvi divulgá-lo. Observem que foi publicado em 2.000 e, pelos temas que traz, parece que foi ontem.
Gilvan Almeida

A praga do convencimento
Por Nilton Bonder

Há poucos dias, o Papa tocou numa antiga ferida do mundo ocidental, pedindo perdão pelos crimes cometidos em "nome de Deus". Nunca ficou tão claro politicamente o significado do terceiro mandamento, "não tomarás o nome de teu Deus em vão". Em particular, foram lembrados os crimes cometidos a serviço da "verdade": a intolerância e violência contra dissidentes, guerras religiosas, violência e abusos dos Cruzados, e os métodos cruéis utilizados pela Inquisição.
Não há dúvida da importância deste gesto na luta fundamental contra o desejo de "convencer" e "converter". A idéia que norteia nossa civilização ocidental é que, para um lado ter razão, o outro tem que necessariamente estar errado.
Conta-se que um rabino foi certa vez consultado sobre um litígio. Uma das partes envolvidas apresentou seu caso e o rabino aquiesceu: "você tem razão". A outra parte também apresentou sua argumentação e o rabino reconheceu: "você também tem razão".
Atônito, o assistente que o acompanhava, questionou: "isto é um litígio, como pode ser que este tenha razão e aquele também?". O rabino concordou: "você também tem razão".
Exige sabedoria resgatar o rabino da patética condição de alguém que concorda com qualquer argumentação, e compreender o seu ensinamento acerca de uma "razão" que não é indivisível ou única. Para nossa dificuldade, a realidade é sempre composta de vários certos. A democratização do "certo" é talvez o mais importante ato de cidadania e espiritualidade de nossos tempos.
Mais importante do que a memória e o julgamento do passado, talvez seja a capacidade de identificar em nosso tempo as atitudes que ainda hoje representam as forças do convencimento. Elas estão por todas as partes, travestidas de intolerância, proliferando em todas as religiões, com as mais diversas formas de fundamentalismos, fazendo-se o uso da linguagem do "convencimento" ou do "auto-convencimento".
Por mais de uma década, as tradições afro-brasileiras enfrentaram uma guerra religiosa declarada, orquestrada por algumas denominações evangélicas. O resultado, tal qual um Brasil de índios catequizados, foi o abandono de origens e tradições, por conta de outras supostamente "mais civilizadas", mais próximas da "verdade absoluta". Somos contemporâneos de organizações internacionais missionárias, financiadas com a "missão" de evangelizar os judeus. No exterior e no Brasil, crescem cultos dissimulados de "judaicos", com o intuito de trazer judeus, em particular os desgarrados, para conhecer a "verdade", em pleno século XXI.
Talvez mais do que entre judeus, cristãos, muçulmanos ou outras tradições, o mundo no século XXI se divida entre os que "precisam convencer" e os que "não precisam convencer".
São estas as duas religiões que dividem o Ocidente e o Meio Oriente. Os que "precisam convencer" são aqueles que acreditam que a vida é uma caminhada que deve chegar a algum lugar, onde suas vivências e valores serão comparados às vivências e aos valores de outros. Os que "não precisam convencer" não percebem a vida como um mega- "vestibular". Não há primeiros colocados, ou aprovados e reprovados por parâmetros externos e excludentes. Não há salvos, nem perdidos. Mas sim a possibilidade de não sofrer de desespero para os que vivam suas vidas com reverência, integridade e intensidade.
Há neste mundo as pessoas que "vivem e deixam viver", e as que precisam afirmar suas certezas, provando e apontando o "outro" como errado. Um dia iremos concordar que só existe um parâmetro externo para definir o "certo" e o "errado". Certo é qualquer coisa que não queira convencer ou impor a vontade de um sobre o outro. Errado é a postura do convencimento.
Tanto o convencido quanto o que convence são perdedores. O julgamento da vida se baseia em duas listas de acusação: as ocasiões em que fomos convencidos e aquelas em que convencemos. Nossa identidade e nosso senso de presença são experimentados quando não estamos nem na condição de convencidos ou na de convencer. A própria alegria depende do quanto somos convencidos, e do quanto convencemos. Quanto mais convencemos ou somos convencidos, mais tristes e insatisfeitos nos tornamos, maior nosso senso de inadequação, maior nossa insegurança, e maior o nosso medo.
O convencimento nos rouba a vitalidade fundamental de nossa própria raiz, e nos faz dependentes do outro para definir a nós mesmos. O convencimento é uma inveja dissimulada. Hospedeiro do mal, ele se instala em todas as áreas estagnadas e alienadas de nossa vida, e lá deposita suas larvas. Podemos erradicar o "convencimento" do mundo com uma ação "sanitária", cuidadosa e organizada.
Podemos nos educar a ponto de termos "tolerância zero" com a intolerância. E as tradições religiosas têm um importante papel a desempenhar neste sentido, durante o século XXI. O reconhecimento dos erros do passado é um importante passo e, sem dúvida, demonstra maturidade. Mas, ao mesmo tempo, aumenta a responsabilidade. Isto porque a História julgará a todos não pela consciência do erro, mas pela capacidade de evitar repeti-lo.

Nilton Bonder é Rabino da Congregação Judaica do Brasil – Rio de Janeiro

O Globo - Primeiro caderno - Opinião - 23/MAR/2000
http://www.niltonbonder.com/port/port.htm

3 comentários:

Faide Veiga disse...

Gilvan, sdds daqui e de lá ... e de vc ... rsrs
Mas tenho lido teus excelentes,informativos e reflexivos posts ... sempre semelhantes ou iguais ao meu modo de ver ... Esse texto de Nilton Bonder,está perfeito,claro e real.
Domingo grandemente abençoado !!
bjoo
:))

Daniela Carioca disse...

Querido Gilvan,
grata mais uma vez pelo belo presente!
O conhecimento é fonte de vida e ter um amigo para compartilha-lo é uma dádiva.
Muito especial o texto do Nilton Bonder. Uma maravilha apreciar um texto com esta escrita, poder de sistese e penso que posso dizer que tão quanto elucidativo, EDUCATIVO!!
Um excelente instrumento para educar a tod@s, de todas as idades quanto a um principio básico: AMAR AO PRÓXIO COMO A TI MESMO!
Entendo que AMOR & RESPEITO dependem um do outro para existir!

Daniela.

SOCORRO BRAGA disse...

Gilvan,
Que texto claro esse de Nilton Bonder. Eu ganhei recentemente o livro "O Sagrado" do mesmo autor e vou lê-lo logo, logo porque gostei da compreensão do autor e vi no site que vc passou outros livros dele pelos nomes, devem ser bem interessantes.
Grata pelas dicas!

Um abração

Socorro Braga