sábado, 17 de setembro de 2011

Primeiro amor

Gosto dos íntimos ambientes das reminiscências, das lembranças do ontem que preciso retomar, para tentar entender o meu ser hoje. Para o mergulho nas memórias, busco também outras fontes que deixaram marcas, músicas, filmes e fotografias, por exemplo, e ainda em outras, que me fazem reencontrar momentos de dores e alegrias que construíram a minha história até hoje. Os livros têm um papel fundamental neste reviver para compreender melhor, superar, crescer e amadurecer. Tanto os que já li e releio, quanto os novos, como aconteceu recentemente com o livro Primeiro amor, do escritor russo Ivan Turguêniev (1818-1883).
A forma que melhor desenvolvo o aprendizado é visual. Enquanto uns aprendem mais fácil através da audição e outros vivendo a experiência, eu capto melhor o mundo através dos olhos. Assim, o livro já me conquistou pela pintura da adolescente, do pintor impressionista Pierre-Auguste Renoir (1841-1919), na capa. Na conclusão percebi melhor o quanto que a pintura sintetizou o tema central do livro: a adolescente com a mão no queixo, o olhar distante e sonhador, o despertar do coração, o primeiro amor.
Comecei a leitura umas quatro vezes. Gostei do jeito que Turguêniev fez a abertura para que o leitor penetre na essência da obra, mas não passava da página 20, até o dia em que, de repente, em nova leitura, comecei a me sentir como o garoto, identificando semelhanças de sentimentos e situações vividas na adolescência. Então foi o adolescente Gilvan se deliciando na arte do escritor e também nas próprias memórias afetivas, na ingenuidade intensa da fase, dos amores platônicos, tão bem colocados no garoto.
O livro me proporcionou um gracioso reencontro com sentimentos infantis e adolescentes que hibernavam em meu coração. Alguns trechos “pescaram dentro de mim”, como diz a escritora Lygia Fagundes Telles, e trouxeram à superfície, alguns ecos que me faziam parar a leitura, para examinar melhor em que ponto as palavras estavam repercutindo dentro de mim, que sentimentos estavam sendo mexidos. Neste trecho a seguir, observei e admirei a arte com que o autor utiliza as palavras do personagem, equilibradamente entremeadas de sentimentos de veneração e dor, para se referir ao pai:
“...Estranha influência tinha meu pai sobre mim, e estranhas eram nossas relações. Ele quase não se preocupava com minha educação, mas nunca me ofendia. Ele respeitava a minha liberdade e era até – se posso me expressar assim – cortês comigo ... No entanto, não permitia que eu me aproximasse dele. Eu o amava, eu o admirava, ele me parecia um modelo de homem – e, Deus meu, com que paixão eu me ligaria a ele, se não sentisse constantemente a sua mão, que me afastava! Em compensação, quando queria, ele sabia, quase num instante, com uma palavra, um gesto, despertar em mim uma confiança ilimitada.
Minha alma se abria – eu tagarelava com ele como com um amigo sensato, um conselheiro condescendente... Depois ele me abandonava do mesmo modo repentino – e sua mão me afastava de novo; carinhosa e suave, mas me afastava.
(...) Certa vez - uma única, única vez! -, ele me acariciou com tamanha ternura que quase chorei ... Mas tanto sua alegria como sua ternura desapareceram sem deixar vestígio (...)
Seus raros acessos de boa disposição para comigo nunca eram provocados pelas minhas mudas mas compreensíveis súplicas: eram sempre inesperados.(...)”.
Olhei para mim: vivi isso com meu pai? Não, mas já me encontrei com pessoas que ainda vivem presas em labirintos de conflitantes sentimentos de amor e ódio com relação à figura paterna. São prisioneiras de um tempo que não é contado em minutos, tempo que foi vivido e não passou, e nem passará espontaneamente, na medida em que esse tempo é feito de sentimentos, que precisam ser trazidos à luz da consciência, pelo autoconhecimento, e reconhecidos, sem máscaras, em todas as suas características maléficas e benéficas, com todo o seu conteúdo de dor, abandono, desprezo e solidão. Assim feito, acredito que seja possível, para elas, um renascer, com base no perdão e na reconciliação. Reflexão semelhante pode ser feita com relação à figura materna, quando o conflito maior é com ela.
Outro momento magistral do livro acontece quando ao adolescente é revelado um doloroso segredo, que o autor assim descreve:
“...Não chorei, não me entreguei ao desespero; eu não me perguntava quando e como tudo isso acontecera; não me admirei como eu não percebera, não adivinhara antes. (...) O que eu ficara sabendo estava além das minhas forças; essa descoberta repentina me esmagara ... Estava tudo acabado. Todas as minhas flores haviam sido arrancadas de uma vez, e jaziam em volta de mim, espalhadas e pisoteadas.” Vejam que beleza a forma metafórica com que Turguêniev descreve a dor do triste fim.
Às vezes leio com alegria e encantamento determinadas palavras, que me fazem ver (penso eu) a essência e a arte do coração do escritor, como estas em que Turguêniev descreve, também em forma de metáfora, o amadurecimento do ser humano e o valor das paixões da juventude:
“...quando sobre minha vida já começam a se estender as sombras do entardecer, o que me restou de mais fresco, mais precioso, do que as lembranças daquele tão fugaz, tão rapidamente passageiro temporal primaveril?”.
E também quando diz: “...Ela se arrancou de mim e se afastou. Eu também me afastei. Não sou capaz de transmitir o sentimento com o qual me afastei. Eu não gostaria que ele se repetisse algum dia; mas me consideraria infeliz se jamais o tivesse experimentado...”
Esta é uma das grandezas da literatura: fazer-nos pensar, sentir, reviver dores e amores, penetrar em um mundo paralelo de magia e encantamento, sonhar acordado...

Gilvan Almeida

Título do livro: Primeiro amor
Autor: Ivan Turguêniev
Editora: L&PM pocket plus
Publicação: verão de 2008
Contra-capa:
O primeiro amor, esse sentimento avassalador e intoxicante, que paralisa e faz sofrer, se desdobra, nas mãos de Ivan Turguêniev (1818-1883), na história de um amor platônico. O grande autor russo abraça esse sentimento universal como ninguém e cria um dos seus mais festejados livros.
Vladimir Petróvitch, um garoto de 16 anos, cai de amores pela vizinha, Zinaída Alexándrovna, de 21 anos, filha de princesa e dona de uma beleza arrebatadora. Mas o destino de amores platônicos todos sabem qual é ... E Turguêniev, na sua genialidade, soube ir além.
Publicado em 1860, Primeiro amor reflete todo o lirismo e o frescor da primeira vez que o coração acelera por alguém.

2 comentários:

Anônimo disse...

Gilvan,

Não tenho palavras para expressar tamanha emoção com esssa postagem.

Grato !

N ***

Anônimo disse...

Acabei de ler "Primeiro Amor" e ao pesquisar para achar alguns trechos por aqui, encontrei seu blog. Descreveu tão lindamente o que sentiu ao ler, parabéns. AMEI ESTE LIVRO e vou procurar mais sobre o autor. Abraços e fique com DEUS! Kátia Storch Moutinho