sexta-feira, 1 de junho de 2012

Sobre a sanidade mental de Fernando Pessoa: breve e despretencioso estudo.

Esse post foi escrito mais pelo (passional) admirador do poeta português Fernando Pessoa, do que pelo médico. Sendo assim, não houve nenhuma intenção de dar cunho científico, acadêmico, a ele.
Tenho interesse em conhecer mais sobre as ligações observadas entre os transtornos mentais e as artes. Também faço a pergunta que muitos fazem: Por que alguns seres humanos, mesmo sendo portadores de sérios problemas mentais, eram e são reconhecidamente geniais  naquilo que faziam, contrariando, muitas vezes, a visão lógica e científica? Cito como exemplo o pintor holandês Van Gogh, que, mesmo portador de grave transtorno mental, conseguiu ser um dos maiores pintores do mundo ocidental.   
Além de ler e admirar, cada vez mais, a poesia de Fernando Pessoa, também estudo a sanidade mental do poeta, tanto nos relatos de sua vida, quanto na obra literária. Sei que é ousadia de minha parte, já que esse tema é fruto de diversos estudiosos no mundo inteiro.
No Congresso Brasileiro de Psiquiatria de 2010 foi apresentado o artigo Estudo Patográfico de Fernando Pessoa, elaborado pelos psiquiatras Suzana Azoubel de Albuquerque  e Othon Bastos, de Pernambuco. A seguir o resumo:

“Fernando Pessoa, incontestavelmente um dos maiores gênios da literatura universal, é objeto deste estudo patográfico. Através da análise de sua biografia e obra, os autores buscam delinear seus perfis psicológico e psicopatológico e caracterizar uma associação entre sua evidente bipolaridade e seu padrão criativo. Os dados do estudo revelam claramente um componente bipolar e sugerem haver influência de seu humor de base sobre a atividade literária, quanto ao conteúdo, número de poemas e estilo literário. Verifica-se a presença de múltiplas comorbidades: Dependência de Álcool, Transtornos de Ansiedade Generalizada, de Ansiedade Social, além de Fobias Específicas. Do ponto de vista caracterológico, constata-se um Transtorno de Personalidade Esquizóide, com evidentes transtornos da psicossexualidade.”


 Há quem afirme que Fernando Pessoa, por causa de seus heterônimos (“Nome imaginário sob o qual um escritor cria obras de estilo, tendência e características diversas das suas, como se fossem de fato de outro autor”, segundo o dicionário Aulete), era portador de Transtorno dissociativo, outrora denominado Transtorno de personalidades múltiplas. Fui ao CID-10, livro de códigos internacionais e descrições dos transtornos psiquiátricos, ler com mais atenção a respeito deste transtorno. Vejam um pouco do que encontrei:

Transtornos dissociativos [de conversão] - F44
“Os transtornos dissociativos ou de conversão se caracterizam por uma perda parcial ou completa das funções normais de integração das lembranças, da consciência, da identidade e das sensações imediatas, e do controle dos movimentos corporais. Os diferentes tipos de transtornos dissociativos tendem a desaparecer após algumas semanas ou meses, em particular quando sua ocorrência se associou a um acontecimento traumático. (...)”

Minhas observações: Com base no CID-10 e na vivência na área da Saúde Mental, não considero Fernando Pessoa como um portador de Transtorno Dissociativo. Os heterônimos não eram personalidades que ele assumia patologicamente na vida, no dia a dia, mudando de comportamento de acordo com a personalidade da hora, e sim recursos artísticos (considerados geniais) que ele utilizou, lucidamente, para dizer a verdade humana que o coração dele era portador, e tornar-se assim o maior poeta da língua portuguesa. Só um Fernando Pessoa seria "pouco", para dizer tudo o que ele tinha a dizer.
Em outra frente do estudo continuo a leitura do livro Fernando Pessoa, uma quase  auto-biografia, do escritor brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho, Editora Record, e encontrei  um capítulo onde alguns familiares e amigos que conviveram com o poeta por toda a curta vida dele, dizem como o viam, quais seus comportamentos rotineiros e constantes. E este é um ponto importante para uma efetiva avaliação e um diagnóstico psiquiátricos: como a pessoa é vista pelos que a rodeiam. Neste capítulo também há palavras dele sobre si mesmo, que revelam clareza, real contato com a intimidade de seus pensamentos e sentimentos, reconhecendo em si as fragilidades, e, ao mesmo tempo expressando “clarividência” (que o autor do livro chama visão “pretenciosa”, mas que o futuro confirmou o que o poeta diz) a respeito da importância de seus escritos.
O capítulo:

Um homem discreto – Página 88
(em marrom palavras de Fernando Pessoa, em negro do escritor e em vermelho o que dizem dele amigos e familiares).

“Não faço visitas, nem ando em sociedade nenhuma – nem de salas, nem de cafés”; que fazê-lo seria “entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo se não aos meus raciocínios e aos meus projetos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre serão mais belos que a conversa alheia”. A explicação que dá para tal aversão às práticas sociais é simples (e pretenciosa): “Devo-me à humanidade futura. Quanto me desperdiçar, desperdiço do divino patrimônio possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes possa dar.” Na dimensão do pensamento, apenas, que “nunca tive uma idéia nobre de minha presença física. Pareço um jesuíta fruste (gasto). Sou um surdo mudo berrando, em voz alta, os meus gestos”. Esses gestos são comedidos, de “extrema cortesia”, mesmo delicados. “Sou tímido, e tenho repugnância em dar a conhecer minhas angústias”; razão por que (quase) nunca distribui cartões de visita (...). “Calmo e alegre diante dos outros” é, “em geral, uma criatura com que os outros simpatizam”. Ri pouco e ouve mais do que fala – “Não se deve falar demasiado”. No fundo, “ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver”; porque, “a não ser que ouças, não poderás ver”. Seu interesse é mais dialogar que debater. E não gosta de se exibir. De magoar os outros menos ainda. O heterônimo Barão de Teive, com vida que quase reproduz a do próprio Pessoa, diz: “Pus-me sempre à parte do mundo e da vida ... nunca alguém me tratou mal, em nenhum modo ou sentido. Todos me trataram bem, mas com afastamento. Compreendi logo que o afastamento estava em mim, a partir de mim. Por isso posso dizer, sem ilusões, que fui sempre respeitado. Amado , ou querido, nunca fui.”
Os depoimentos dos que com ele conviveram são, entre si, parecidos. Segundo a irmã Teca, “...era muito reservado e muitas vezes parecia alheio ao que o rodeava. Contudo sempre foi extremamente dedicado, fácil de contentar, não me lembro de o ver irritado. Nunca levantava a voz, era educadíssimo. Para todos tinha sempre uma palavra amável, era o que se chamava um gentleman, isso era.” Ophelia Queiroz (única mulher alvo de seu amor, nunca vivido em toda a sua plenitude) a segue: “O Fernando era extremamente reservado. Falava muito pouco de sua vida íntima”. Carlos Queiroz, sobrinho de Ophélia, diz que “seus gestos nervosos, mas plásticos e cheios de correção, acompanham sempre o ritmo do monólogo, como a quererem rimar com todas as palavras. Nunca ouvi ninguém queixar-se de ter sido atingido por ele.” Para o escritor francês Pierre Horcade, “irradiava um encanto indefinível feito de extrema cortesia, de bom humor e ainda uma espécie de intensidade febril que borbulhavam sob a aparente fachada da boa convivência.” Antônio Cobeira declara ser “uma criatura afável, irrepreensível no trato, de primorosa educação, incapaz de uma deslealdade, imaculadamente honesto, dedicadíssimo, triste e tímido.” Jorge de Sena confirma ser “um senhor suavemente simpático, muito bem-vestido, que escondia no beiço de cima o riso discretamente casquinado (irônico). A calvície, os olhos gastos, o jeito de sentar-se com as mãos nos joelhos e uma voz velada davam-lhe um ar estrangeiro, distante no tempo e no espaço”. Casais Monteiro sugere que “ninguém quis ser menos aparente”, resumindo sua vida em um “discreto pudor, de amor ao silêncio e à contemplação”. O amigo Almada Negreiros lembra ser uma “pessoa calada”, a mais silenciosa do grupo. “Ele era um auditivo, e eu um visual”. Em conversa com Antônio quadros, acrescenta: “mas olha que nenhum de nós tinha dúvidas, ele era o mestre!” Fernando DaCosta completa: “como pessoa o Pessoa não tinha graça nenhuma, um macambúzio que só visto. Conversávamos bastante, quer dizer, eu é que falava, ele estava quase sempre calado. Ninguém sabia, aliás quem era o Fernando Pessoa. A glória só veio 20 e tal anos depois de sua morte”.
Todo artista revela-se em sua obra, aliás, todo ser humano mostra aquilo que é, naquilo que faz. Não há como se esconder. Até o momento, em tudo o que já li escrito por ele e seus principais heterônimos (quatro livros e diversos sites e textos divulgados na internet) encontrei lucidez, sensibilidade e inteligência refinada e superior à maioria.
Concluindo:  talvez pela minha pouca vivência em psiquiatria – somente 6 dos 30 anos de médico, até hoje – não consigo ver, se é que há, o psicótico em Fernando Pessoa. Percebo sim, que ele viveu em um crônico e profundo sofrimento psíquico, para o qual não encontrou (nem procurou efetivamente) tratamento adequado, mas ainda não constatei uma alienação mental, ou, como diz o dicionário Houaiss a respeito da palavra psicose: “transtorno mental caracterizado por desintegração da personalidade, conflito com a realidade, alucinações, ilusões etc.”

O estudo continua.......

Gilvan Almeida

3 comentários:

Luciana Santa Rita disse...

Oi amigo,

Boa noite!Tudo bem? Esse foi um dos melhores textos que li sobre insanidade e iluminação criativa. Vou falar, não cientificamente, mas com a minha intuição: o criar envolve flexibilidade, disposição para se desnudar e romper paradigmas. E aí como ser normal para ser especial? A própria concentração, resolvida hoje com Ritalina, é oposta do despertar da criatividade.

Acho que todo blogueiro também tem um pouco de insanidade, pois vence a barreira do medo e consegue ousar, mudar e se adaptar.

Se falei besteiras, digo é só conhecimento tácito e não científico.

Bom final de semana! Beijos.

Lu

Maria Lucia (Centelha) disse...

Olá Gilvan, boa tarde!

Esse teu estudo sobre genial Fernando Pessoa, ao qual eu também sou passional admiradora, deu-me muito o que pensar sobre os gênios de todas as artes e talentos. Perante o mundo, ou as sociedades científicas, médicas, estes indivíduos devem ser portadores de anormalidades pra poder justificar a grandeza com que se apresentam ao mundo. Não alcançam com seus conhecimentos meramente científicos e mecanicistas, a superioridade de certos homens brilhantes pelo fantástico talento que trazem. Gostei quando você,colocou no teu texto, que Fernando Pessoa tinha muito o que dizer, por isso ele se sentia pouco, ante esse tudo que havia nele! Parabén, amigo, muito, muito bom esse estudo!

Grande abraço, da Lu...

Luciana Souza disse...

Oi Gilvan
Eu já li, e minha terapeuta vive me dizendo que os bipolares tem algo de genialidade, nem isso eu tenho (kkkkkkk), talvez eu tenha um pouco de facilidade para aprender, só isso!
Agora, não sabia que o grande Fernando Pessoa fazia parte desses portadores do transtorno, muito bom seu post, instrutivo.
Bjos. e um ótimo domingo.